Adolfo Maria, exilado em Lisboa desde 1979 , espera pelo passaporte para poder voltar ao seu país.
Texto:António Rodrigues.
Nacionalista
desde os anos 50, Adolfo Maria chegou a ser preso pela PIDE. Membro do MPLA da
primeira hora, passou pelo exílio em Argel
e Brazzavile, dirigiu a Rádio Angola Combatente, o Departamento
de Informação e Propaganda, fez parte do Centro
de Estudos Angolanos, foi próximo de Agostinho
Neto, tudo isto até romper com a direcção centralista do presidente e
participar na Revolta Activa com Gentil Viana.
Depois
da Independência, e quando todos os que lhe estavam próximos politicamente eram
detidos e torturados pelos seus antigos companheiros, viveu clandestinamente em
Luanda, num apartamento
com as janelas tapadas com um plástico. Passou quase três anos assim,
sobrevivendo com um regime rigoroso de ioga e um estrito plano de
actividades que incluía tomar notas de tudo o que ia saindo na imprensa.
Entregou-se, finalmente, em 1978 e foi enfiado num avião e expulso para Portugal em 1979.
Após
todos estes anos de exílio, continua a afirmar-se angolano, a olhar
atentamente a realidade do seu país e a comentar as notícias do continente no
programa semanal da RDP África “Debate Africano”. Em 2006, o
livro Angola no Percurso de um Nacionalista : Conversas com Adolfo Maria (Afrontamento)
resgatou-o um pouco do esquecimento. E se aí o que tínhamos era uma
conversa académica com o investigador
Fernando Tavares Pimenta, uma lúcida, mas mediada,
reflexão sobre o nacionalismo angolano, o seu novo livro, Angola, Sonho e Pesadelo,
editado agora pelas Edições Colibri é a história mais pessoal desses
dois anos de “autocárcere”, como lhe chama, em que se escondeu das garras da
polícia política do regime, a DISA.
Quando
acontece o 25 de Abril estavam a
preparar a Revolta Activa, chegaram a pensar em recuar?
Sim,
muitos de nós pensaram nisso. Mas, como nós fazíamos o contrário do que existia
no movimento, discutíamos a fundo e porfiadamente, durante horas, cada um
apresentou os seus argumentos e a linha que venceu foi que o
movimento estava de tal maneira fragilizado que era útil lançar aquele apelo,
era útil fazer um congresso, até para unir as três facções do movimento e pôr
os problemas, para dali sair uma nova estratégia. E se já se justificava
no momento em que nós começámos a organizar a Revolta Activa, em finais de
Fevereiro, princípios de Março de 1974, a verdade é que depois do 25 de Abril
sentíamos que era mais necessário que nunca. Agora, sucedeu precisamente o
oposto daquilo que esperávamos. Porquê? Porque muitos quadros do exterior que,
realmente, perfilhavam dos nossos pontos de vista, de que aquilo estava no
chão, estava a cair, era preciso fazer qualquer coisa, perante o 25 de Abril
acharam que aquele era o caminho para a independência e que era de aproveitar.
Portanto, acharam que o momento não era de discutir mas de caminhar para vencer
a concorrência, no fundo, para chegar ao poder.
Qual
era a sua posição?
A
minha posição era de que devíamos fazer a Revolta Activa. Eu pertencia ao
núcleo duro. Aliás, a Revolta Activa foi trabalhada a partir da ideia do Gentil
Viana, mas, quando começa a tomar forma organizativa clandestina, estão três
pessoas: o Gentil Viana, o Comandante Monimambo e eu. E esse foi o núcleo duro
durante bastante tempo.
E
arrependeu-se dessa decisão?
Não,
não me arrependi, porque, ao fim e ao cabo, hoje a Revolta Activa, que foi tão
caluniada, que foi mesmo objecto de perseguição, que levou à nossa prisão – eu
só não fui porque me escondi – e que está relatado nesse livro que publiquei há
dias, Angola, Sonho e Pesadelo, hoje a Revolta Activa ou algumas pessoas
da Revolta Activa restam como uma espécie de referência moral e política,
ética, ao fim de 30, 40 anos. Não foi por acaso que no lançamento do meu livro,
eu tive uma sala a transbordar e estavam lá angolanos de todas as gerações e de
diferentes modos de pensar. De facto, não conseguimos modificar o processo, até
porque o processo passou a ser mais comandado daqui de Lisboa, do que de lá. E
o MFA acabou por apoiar muito fortemente a direcção do Agostinho Neto. O MPLA
estava mesmo no chão, fragilizado, num recuo político-militar em todas as
frentes – a Primeira Região estava morta; no Leste, estava tudo na fronteira; e
Cabinda, tínhamos uma base mas era no Mayombe e fazíamos uns ataques mas
praticamente a partir da fronteira, sem o povo connosco, porque o povo não
aderia. Se o 25 de Abril tivesse aparecido seis meses depois, a clarificação
dentro do MPLA ter-se-ia feito e ter-se-iam encontrado novas estratégias, novas
motivações e uma democratização, uma participação mais forte, porque o MPLA era
o movimento com mais quadros das colónias portuguesas. Sobretudo, no
princípio da luta, em 1960/61, tínhamos uma quantidade de quadros tremenda,
comparado com o PAIGC e com a Frelimo.
Acha
que se tivessem recuado, se tivesse ganho a posição do ‘vamos ver o que vai
acontecer e não vamos avançar com a Revolta Activa’, acha que a situação teria
sido diferente ou acabariam perseguidos na mesma?
Teria
sido diferente. A única coisa é que muitos de nós teríamos participado daquele
poder ditatorial que foi instalado no pós-independência. Teríamos colaborado
naquele processo de esmagamento dos adversários políticos, da UNITA e da FNLA,
que foi a linha adoptada pela direcção do MPLA – Agostinho Neto, Lúcio Lara,
Ivo Carreira, Nito Alves e por aí fora. Muitos de nós teríamos sido poder e
teríamos seguido a via que muitos dos nossos camaradas seguiram. Uns que tinham
as mesmas ideias que nós acabaram por ser ministros e outros, não acumularam
riqueza, mas usufruíram dos privilégios do regime instalado, quer para sua
projecção pessoal, quer até com outro estilo de vida, outros ainda enriqueceram
através do regime que foi implantado e formaram a nomenclatura que perdurou
muito tempo e, em grande parte, ainda resta no poder. Não íamos modificar nada.
Não
acha que podiam ter sido essa reserva moral que o novo regime precisaria para
conter esses excessos?
Não,
se não já tínhamos contido lá fora. No exterior, a direcção do movimento já
punia com a morte aqueles que divergiam. Era a cultura da época. Um contexto
diferente. De qualquer maneira, é a cultura que perdura e os resquícios passam
pela exclusão do outro e o outro é aquele que pensa diferente de nós.
Críticas
a Pepetela
Em
recentes declarações à agência Lusa, Pepetela dizia que o 25 de Abril
tinha chegado na pior altura para o MPLA. Mas acha que se tivesse chegado seis
meses depois, sem essa reflexão, não corriam o risco de acontecer o mesmo?
Eu
li as declarações do Pepetela. Ele reconhece que o MPLA estava dividido e quase
deixa subentendido que as outras tendências aproveitaram o 25 de Abril para
aprofundar as divisões. São muito capciosas as declarações dele. O meu ponto de
vista é bem diferente. Segundo inferi das declarações dele, chegou na pior
altura porque veio atrasar aquele processo de luta contra os outros
[movimentos] pela supremacia. E eu digo que veio na pior altura porque não
pudemos fazer a clarificação do MPLA e sair dali com
uma estratégia correcta, porque a que existia tinha sido a incorrecta.
Porque, aí sim, aí vínhamos todos juntos. Eu era um dos colaboradores próximos
do [Agostinho] Neto, muito amigo e admirador dele, e tive de romper e foi uma
dolorosa ruptura. E o Pepetela seguiu e teve as suas recompensas – foi
vice-ministro da Educação, etc. São opções pessoais, mais nada.
Tendo
em conta a situação do MPLA naquela altura, se não tivesse havido o 25 de
Abril, podia o MPLA ter desaparecido?
O
MPLA estava quase a desaparecer. Há relatos disso. O Nito Alves, quando se dá o
25 de Abril, está em Luanda, para ver se há uma última possibilidade. A PIDE
chamava-lhe nomadismo, que o MPLA estava em nomadismo, eram 200 ou 300 pessoas
do povo, enquadradas por 30 ou 50 guerrilheiros sem balas que andavam sempre a
fugir. Isto na Primeira Região. E nós sem possibilidade de abastecer dentro do
exterior, devido ao cordão “sanitário” feito pela UPA e, sobretudo, pelas
tropas do Mobutu [Sesse Seko, presidente do Zaíre]. No Leste, onde nos tínhamos
expandido através de uma má estratégia, as forças portuguesas fazem a
contra-ofensiva a partir de 1968, que começa a notar-se bem a partir de 1970,
quando já morreu o Hoji-Ya-Henda, quando já morreu o Américo Boavida, quando já
as nossas bases foram desmanteladas – lá uma outra se ia mantendo. Ainda se
tenta a coluna Ferraz Bomboco, depois chamada pomposamente rota Agostinho Neto,
a imitar a rota Ho Chi Min (as nossas manias de grandeza), que tenta a ligação
através do Leste – subindo pela Lunda, entrando em Malange e chegando ao Kwanza
Norte – para reforçar a Primeira Região. Ficámos na fronteira entre Luanda e
Malange e morreram vários comandantes, outros foram aprisionados, falaram na
rádio, descobriram os podres do movimento. Além das divisões existentes,
estávamos todos na fronteira, se um ou outro combate havia era, de vez em
quando, para fazer um comunicado para a OUA – entrava-se 30 ou 40 km,
atiravam-se uns fogachos sobre um quartel, sem saber os resultados, e
voltava-se.
A
minha pergunta era essa, se tivesse continuado aquilo que estava…
Não,
porque o próprio presidente permitiu o reajustamento na Frente Leste, ideia do
Gentil Viana, de lançar uma discussão, ouvir as críticas para depois colher os
ensinamentos e traçar as correcções necessárias. Até se congelou o comité
director, para todos ficarem em pé de igualdade – foi uma catarse
extraordinária. E com a pressão dos países vizinhos, que estavam fartos de nos
ter ali, nós chegaríamos a um entendimento.
“Se
o 25 de Abril se dá em 1973 seria o Holden Roberto o presidente de Angola”
Mas
o Movimento de Reajustamento fracassou.
Pois
fracassou, porque foi empalmado pelo presidente Agostinho Neto. Depois dessa
discussão, cabia à Comissão Provisória de Reajustamento nomear o estado maior.
Para essa comissão e para o estado maior, o Neto disse “eu faço as listas”. Os
outros quadros concordaram, o Gentil Viana opôs-se. Mais tarde é acusado pela
Revolta Activa de presidencialismo absoluto. É ele que faz as listas a seu
bel-prazer, misturando como quer. Não é resultado de uma eleição democrática
que vinha a ser depurada desde a base. O Reajustamento falha por isso. E quando
propusemos que a discussão se aprofundasse, aquilo criou um mal-estar e pôs a
direcção contra nós. A partir daí é que vários quadros começam a conversar para
ver como se saía daquele impasse. Tanto mais que o Agostinho Neto tinha feito
um acordo com o Holden Roberto, dando-lhe a primazia política e deixando para
nós a primazia militar, quando nós não podíamos exercer essa primazia militar
porque nos estava vedada toda a Primeira Região. Olhe, se o 25 de Abril se dá
em 1973, seria o Holden Roberto o presidente de Angola.
É
por isso que diz que o Acordo de Kinshasa foi um tremendo erro?
Tanto
foi que o presidente Neto chamou o Gentil Viana para seu conselheiro e houve um
grande combate diplomático na OUA para se impor a primazia da luta armada. E a
partir daí começam de novo as querelas com o Holden Roberto e Mobutu não faz
valer a sua estratégia que, tenho impressão, já era uma estratégia com os
Estados Unidos para se pensar numa solução política englobando os dois
movimentos, mas com o MPLA neutralizado nessa frente.
Tirando
o facto de ambos quererem a independência de Angola, havia muitas poucas
afinidades entre MPLA e FNLA?
Sim.
O MPLA sempre foi – e hoje a sua força é evidente no panorama político angolano
– o movimento mais transversal a toda a sociedade angolana. Começou por ser um
movimento essencialmente urbano. Aliás, foi a força urbana que o fez renascer.
Se tem uma base étnica é a da região do kimbundo mas no decurso da luta, quando
começou a tocar os luchazes, os luvalos, os tchokwé, no leste, alguns umbundos,
não muitos, e, sobretudo depois da independência, na constituição do exército,
houve um recrutamento forte nas Lundas e em todo o país. Tanto o aparelho
repressivo da DISA, como o aparelho militar, tinham componentes de toda a
parte, acabando por entrar nos terrenos da UPA/FNLA, dominando a região norte,
a região bakongo. Com todas as suas deficiências, o MPLA representava a
modernidade. Desde o tempo de Viriato da Cruz, a ideia de Estado-nação não
correspondia exactamente a uma ideia de autoridade tradicional. Estava bastante
incorporado no pensamento dos dirigentes do MPLA, o alargamento da sua base. Os
outros movimentos, hoje já não são profundamente étnicos como eram, mas não têm
a transversalidade do MPLA, muito longe disso.
No
entanto, no princípio dos anos 70 e por alturas do 25 de Abril, já há muito
tribalismo e racismo dentro do MPLA.
Há,
por várias razões. Primeiro, tivemos sempre a pressão da UPA/FNLA, no que
respeita a racismo. Diziam que o MPLA era dos mulatos, dos brancos. Por outro
lado, desenvolve-se porque as coisas não funcionavam bem dentro do MPLA. Não se
fazia educação política e, portanto, as bases eram muito frágeis. Eu senti uma
grande desilusão quando desci da Argélia para o Congo – eu traduzia e publicava
no Centro de Estudos Angolanos obras revolucionárias com exemplos de outros
países, do Vietnam, da China, e vi que esses livros nem sequer eram utilizados,
estavam lá num armazém. Quando começou a alfabetização, fiquei espantado, como
é que indivíduos que haviam saído das matas do norte de Angola em 1961 ainda
continuavam analfabetos. Não fazia sentido. Além disso, a pouca ocupação,
porque não havia guerra, criou uma espécie de lumpesinação. As pessoas ficaram
ali no exterior, começaram a ter os seus negócios, a ganhar cumplicidades, e
parte do nosso abastecimento era desviado para os mercados congoleses por
alguns dirigentes. Aquilo que encontramos no FNL do Vietnam, uma disciplina
tremenda, uma entrega à causa colectiva, ali estava a diluir-se cada vez mais.
Mau funcionamento organizativo, mau enquadramento dos militantes, pouca
formação política e por aí fora. Isso faz desenvolver todas as tendências
negativas. E as manifestações raciais foram muito fomentadas pela PIDE
portuguesa.
Apesar
de ser um experiente nacionalista, tendo passado pelas prisões, sentia que a
sua experiência era secundarizada pela sua cor?
Não.
Ela só era secundarizada por aqueles dirigentes que não gostavam de ouvir
verdades, mas eu tinha uma ligação muito estreita com militantes que gostavam
de me ouvir, precisamente porque eu falava, expunha as coisas e mobilizava. Não
só através da rádio, também nas bases guerrilheiras. Agora, não há dúvida que
alguns militantes de base não me ouviam, porque ouviam os seus caciques que
lhes diziam que eu cantava uma melopeia para os enganar. Tive amigos
extraordinários, militantes de base, rurais, sendo eu um urbano e branco.
Indivíduos que andaram a cortar a cabeça de brancos, eram extremamente meus
amigos.
Os
ataques de 1961
Esses
ataques de 196, foram justificados?
Veja
o que são 500 anos de violência colonial, a escravatura, a coisificação do
autóctone, transformado em mercadoria. Naquela região onde aconteceu essa
revolta camponesa, tinha havido espoliação de terras para o café, quer com
cumplicidade de autoridades administrativas, quer, às vezes, com acções
directas de colonos que ficaram donos de propriedades enquanto os autóctones
iam sendo empurrados das terras. Além da violência colonial, que permitia a
chibata, o chicote, a palmatoada até sangrar das mãos. Passando pelo pagamento
de impostos da palhota e o redimir desses impostos com obras na estrada. Após
as chuvas, quando as estradas de terra batida ficavam todas instransitáveis, o
chefe de posto vinha cobrar impostos, como as pessoas não tinham dinheiro,
imadiatamente arranjava 20 ou 30 homens com picareta, pá e enxada para arranjar
as estradas. Esta não é uma violência de um ano, é de dois, três, dez, passa de
geração em geração. Resta saber se foi desencadeada pela UPA nesses termos,
isso é que resta saber. O Holden parece que se mostrou surpreendido, outros
dizem que não.
E
para vocês, nacionalistas urbanos, como é que encararam o assunto?
Aquilo
foi um choque. Eu gostaria que não se tivesse passado assim. Mas qual era a
saída que nos davam? Não podíamos formar partidos. Não podíamos ter jornais que
veiculassem as nossas ideias. Formavam-se grupos, continuavam a ser presos. A
luta política tornou-se impossível; a um dado momento, estávamos todos na
cadeia ou passáramos por lá. O que é que nos restava? A luta armada. Era uma
ideia que ficara clara: isto não vai lá de outra maneira senão à porrada. A
polícia tinha entrado muito fundo e a partir da cidade já não se podia fazer
nada.
Mas
o regime salazarista acaba por aproveitar esse massacre em termos
propagandísticos internacionais.
É verdade.
Se fosse o MPLA a tomar a iniciativa no terreno, não teria ido por essa via. Eu
se tivesse poder de decisão, não iria por essa via. Teria enveredado pela luta
armada. Haveria vítimas? Com certeza. Mas num ataque a um posto administratrivo,
num ataque a um posto de polícia, num ataque a um quartel, aliás, o 4 de
Fevereiro foi um movimento espontâneo – embora o MPLA o reclame para si – e
visava, sobretudo, libertar os presos políticos que estavam no Forte do Penedo,
na casa de reclusão. Mas atacaram a 7ª Esquadra.
Até
porque vocês sabiam o valor da propaganda.
Numa
estratégia nacionalista correcta, o MPLA deveria ter encontrado aliados na
população branca. Não a pôr em bloco contra o nacionalismo e isso implicava
violência selectiva. Deveria ter havido mais cuidado em procurar aliados no
interior de Angola.
Falando
de Agostinho Neto, a determinada altura ele confiava muito em si, em que
momento se dá a ruptura entre os dois?
Neste
livro, Angola, Sonho e Pesadelo, agora publicado, há lá passagens de um caderno
– não é diário, porque registava de 15 em 15 dias, de mês a mês – em que
apontava aquilo que pensava naquela altura. E há lá uma parte em que está
patente que começo a distanciar-me do presidente. Primeiro, numas conversas
francas em que lhe digo que as coisas estão mal e ele me responde, “tu és
impaciente, as coisas levam o seu tempo, é complexo”; e há lá, precisamente,
uma passagem em que eu digo que vou falar com ele, por causa do Centro de
Estudos. Era uma conversa para um quarto de hora que se transformou em duas
horas e da qual saímos zangados. Isto passa-se em 1972, 1973. Zangados, no
sentido de dois amigos que discutem e ficam desagradados por não terem
exactamente o mesmo ponto de vista. Porém, a verdade é que me começava já a
questionar. A ruptura faz-se na assembleia de militantes activos, quando os
meus colegas são expulsos e eu, que estava a secretariar a assembleia, a 19 de
Fevereiro, digo: “Eu não estou de acordo com esta atitude. Estamos a expulsar
camaradas que são importantes. Dizemos que estamos cercados pelo imperialismo e
afinal nós abrimos brechas. Vocês só não puseram aí o meu nome na lista para
ser dirigente porque sou branco. Eles saíram porque não queriam participar na
futura comissão, eu é por uma questão de princípio.” E saí. O [Lúcio] Lara, o
Neto e mais, também o Dimuka [Ricardo Domingos], tentaram reter-me. Até que o
Neto, chateado, disse: “Deixem-no ir.” Para o Neto talvez não tenha sido ainda
a ruptura, pensou, talvez, que iria ter ali um caso. No entanto, passados uns
dias, falando entre nós, se resolve ir para um movimento de contestação que
depois se chamou Revolta Activa, aí começou a ruptura. Porque,
subterraneamente, eu estou conspirando; não contra ele, mas no sentido de fazer
uma ruptura com aquele estado de coisas, procurar uma coisa nova. Com ele, é
evidente, pois nós não punhamos em causa a presidência dele.
Nunca
houve na Revolta a ideia de substituir Agostinho Neto por outro dirigente?
Não,
pelo menos não estava perfilado no horizonte. Falava-se mais no que se iria
conseguir em termos de organização, de princípios, de estruturas – os nomes
viriam depois com o que acabasse por ser aprovado num congresso. Mas, nessa
ocasião, já o Neto tinha um certo peso nos quadros. A posição frontal era para
o limitar no exercício das suas funções.
Mas
acusavam-no de pessoalização das decisões políticas.
Aí é
que está. O movimento, no início, era democrático, tinha um comité director.
Reunia, tomava decisões em colectivo. Ora o comité director deixou, praticamente,
de se reunir depois de 1964, quando o Neto conseguiu uma equipa. E como é que a
conseguiu? Como tinha o direito de cooptação para o comité director, a um
momento dado, este tinha mais elementos cooptados que eleitos. E esse comité
director nem se reunia. Não havia departamento de finanças. Toda a ajuda que
chegava, só o Neto é que sabia. Ele é que punha e dispunha. O arbitrário estava
instalado e isso impediu que as estruturas crescessem de maneira harmónica. O
movimento foi-se enfraquecendo. Nós tínhamos muitos quadros e produzíamos
pouco. Havia centros de excelência, foi o caso dos CIR (Centros de Instrução
Revolucionária), foi o caso do Centro de Estudos Angolanos, de repente, aquilo
desfazia-se.
Não
seria a velha táctica de dividir para reinar?
Não
posso dizer; na prática, foi isso. Nunca permitiu que estruturas fortes fossem
constituídas. Ele promovia, despromovia, conforme sentia pressão ou não sentia
ou queria aliciar ou não queria.
“Autocárcere”
de quase três anos
Falando
do “Angola, Sonho e Pesadelo”. Esteve naquilo que chama o seu “autocárcere”
desde 13 de Abril de 1976 até Setembro de 1978, como é que alguém consegue
aguentar uma situação que parece pior que ser preso, porque implica passar
todos os dias alerta e com receio?
Concretamente,
estive quase dois anos sozinho. Os poemas que ponho entre aspas [no livro],
expressam precisamente esse estado de espírito. Era terrível. Não havia pontos
de referência como há nas prisões – os guardas, as horas certas de refeição, o
apagar da luz, até os interrogatórios. E como ali o arbitrário estava
instalado, sabia que se fosse encontrado numa rusga qualquer, seria morto pela
DISA. A iminência da morte vem daí e pelo lado de qualquer doença que possa
aparecer (eu tive de dominar sintomas através de ioga). E existe a
possibilidade de enlouquecer. Por isso mesmo, me organizei de maneira tão
rigorosa para ter uma ocupação estrita de tempo e variedade de actividades:
ler, tomar notas, escrever, ouvir rádio, aquecer comida, fazer iogurtes e
longas sessões de ioga com relaxamento. Às vezes, a rotina sufocava-me e tinha
de a quebrar. Mas também quando a quebrava ressentia-me. É impossível, não
estando nessas circunstâncias, relatar o que se sente. As paredes parecem que
avançam para nós, aliás é assim que abre o livro. E depois havia os flash-backs
em relação à minha vida e, então, sobre o porquê de estar ali, era uma dor
tremenda. “Estive a lutar pela liberdade deste povo e nem sei como estão os
meus filhos. E a minha mulher.” É um sofrimento muito forte, requer uma
educação do espírito e uma força de vontade enorme, senão não se sobrevive.
Se
não tivesse esse passado de luta nacionalista, de ter sido preso, acha que
teria aguentado?
Não
sei. É difícil responder mas não há dúvida que foi útil. Apesar de não ter
estado muito tempo preso, já naquela ocasião sabia como organizar-me na prisão
e também tinha as instruções para saber resistir e educar a força de vontade.
Isso ajudou-me muito. Como ajudou uma série de períodos de sacrifício quando
estava na 2ª Frente político-militar do MPLA. E não só. Também em Argel, no
exílio, onde tínhamos carências de vária ordem – desde o espaço, porque
vivíamos todos amontoados, até alimentares e de vestuário (rapar frio com dez
graus negativos).
Estando
fechado, só contactando com as pessoas que lhe traziam a comida…
Podia
ser ao fim de três dias, ao fim de uma semana, ao fim de dez dias.
Isso
foi fazendo com que os seus sentidos se tornassem mais agudos, andava sempre a
tentar interpretar o que ouvia?
Uma
pessoa fica extra-lúcida. Não estamos preocupados com nada do exterior, estamos
connosco próprios. O meu espaço era aquele, a capacidade de concentração era
enorme, tudo se presta para isso. Nós, cá fora, na ocupação diária, neste
vórtice do quotidiano, somos roubados de 90 cento da nossa capacidade de
concentração e de pensamento. Ali, fiz uma autonálise extraordinária.
Quais
foram os piores momentos?
Foram
tantos.
Os
mais agudos?
O
pior momento é quando uma pessoa sabe que o estão a perseguir. Sentira isso quando
a PIDE me prendeu. Ali sentia o mesmo, mas com uma dor maior, porque eram os
meus companheiros que andavam à minha procura para me fazer mal. Outro momento
tremendo, foi quando a pessoa que me escondeu se foi embora. Uma pessoa está
ali, naquele espaço que vai começar a conhecer, com todas as incógnitas diante
de si. Vai durar muito? Vai durar pouco? O que é que eu vou fazer em relação à
minha mulher? E agora os meus filhos? Outro momento foi quando se preparou uma
fuga, através de um cargueiro, e eu estou à espera, tremendamente ansioso, e a
pessoa abre a porta e eu vejo pela cara dela que a coisa se gorou. Isso foi uma
desilusão enorme, já me começava a ver liberto e agora tinha de recomeçar e sem
outra perspectiva. Outro momento terrível foi quando deixei de ver. Como não
via cores, nem volumes, os meus olhos começaram a ficar inflamados – queria
escrever, queria ler e não podia. Era como se tivesse ficado cego. Mas, depois,
levaram-me para uma casa, onde pude espairecer os olhos e rapidamente me curei.
Quanto
tempo esteve assim?
Uma
semana ou mais. Até a pessoa vir e mais dois ou três dias, porque a pessoa teve
de ir falar com a médica.
E o
episódio que o obrigou a mudar de esconderijo, quando foi despejar o lixo muito
cedo e encontrou o porteiro?
Aí,
quando sou visto pelo porteiro, foi uma sensação pior do que quando a fuga não
se concretizou. Meio que desmaiei, fiz um esforço tremendo, fiquei encharcado
em suor. Senti que eram dois anos de sacrifício para nada. Acabei por tomar a
resolução de sair para a rua, temerariamente.
Isso,
porque, normalmente, os porteiros eram informadores da polícia, não é?
Da
DISA. Certamente que ele iria informar. Depois, apesar de ter preparado tudo
para que eles me mandassem para Portugal, a partida de Luanda – foi uma
dor! Fui posto num avião e sabia que me estavam a enxotar do país que era meu,
onde nasci e para cuja independência tanto tinha dado da minha vida. É uma dor
terrível. Até porque não se sabe quanto tempo vai durar. Se será para sempre. Uma
pessoa sente-se lixo.
A
dor de ser traído pelos companheiros
No
livro sente-se isso, que doeu mais a forma como os seus antigos companheiros de
luta o trataram.
Doeu
muito. Não é por acaso que grande parte dos poemas manifestam essa revolta.
Essa tristeza.
As
revoluções costumam comer os seus filhos…
Não
comem todos. Uma pessoa não pode estar de acordo com essa máxima. A revolução,
pela sua definição, não é para comer os seus filhos. É para trazer felicidade
ao povo pelo qual se luta. Ela só come os seus filhos por causa dos homens que
a dirigem. Eu sabia desse perigo. Porém, uma coisa é saber isso, outra é
vivê-lo. Nos meus princípios, não me concebo a exercer represálias sobre
companheiros de luta. Pode seguir-se uma via ou outra e até ficar-se zangado
mas perseguir até à aniquilação do outro, isso não concebo. Primeiro,
procuraram a nossa aniquilação política, depois a nossa aniquilação como
cidadãos e, por fim, quando as coisas se radicalizaram mais, a nossa
aniquilação física. Não merecíamos nada disso.
Ao
mesmo tempo, no livro nota-se o orgulho de ter conseguido evitar que o
prendessem.
Eu
estava num combate. A minha vida foi sempre de muitos combates, felizmente. O
meu combate maior é o combate pela independência de Angola e pela felicidade do
povo angolano. Empenhei-me profundamente nele. E o combate pela liberdade e
dignidade humana. Mas este combate para sobreviver é um combate inserido no
combate grande. Como queria denunciar aquele regime prejudicial ao povo – e que
acabou por o envolver em guerras civis – eu tinha de sobreviver. Depois, havia
também um combate menor que era o combate contra a repressão, um combate
particular entre mim e os esbirros: “Vamos lá ver quem ganha!” E deu-me muito
gozo sair vencedor desse combate. Primeiro, porque soube resistir, portanto,
mostrei-me digno; e segundo, porque os derrotei. Embora depois me tenham
expulsado, a grande batalha deles para me apanharem não a ganharam. Só me
apanharam quando lhes disse “estou aqui, podem-me vir buscar”.
“O
Neto e o Nito tinham a mesma natureza repressiva”
E
como acompanhou, no seu esconderijo, o 27 de Maio e toda a repressão que veio a
seguir?
Eu
já previa que viesse a suceder aquilo. Pela maneira como as coisas estavam
extremadas e transpareciam na comunicação social, e como conhecia o movimento
por dentro – conhecia o Neto e via como o Nito Alves era ambicioso –, sabia que
aquilo ia acabar num embate terrível. Pelo menos de expulsões e prisões. No
entanto, o golpe foi o pretexto para o Neto desencadear uma purga e exterminar
todas as ramificações do Nito Alves dentro do aparelho político, dentro do
aparelho militar (FAPLA) e no aparelho repressivo (DISA). A determinada altura,
passou a ser já ajuste de contas de fulanos contra desgraçados que estavam
presos. Não tinha em grande conta o Nito Alves, tinha era alguma esperança que
outros indivíduos que estavam envolvidos conseguissem uma determinada
plataforma – foi uma má análise. O Neto e o Nito, ambos tinham a
mesma natureza repressiva. Porque se o Nito tivesse ganho, liquidava
de alto a baixo os adeptos do Neto.
Tirando
as diferenças pessoais, havia uma grande diferença entre aquilo que preconizava
um e outro?
Não.
O que havia era uma verborreia revolucionária tremenda, mais nada. Alguns
seguidores de Nito, acreditavam naquela revolução radical, que era impossível,
não havia classe operária, nem nada, para fazer revoluções proletárias! Era um
erro de análise. Muitos fulanos tinham ido de Portugal com as ideias dos ML
[marxistas-leninistas] da época. Para muitos deles, havia o entusiasmo na
revolução, a crença na revolução, a fé na revolução. E Nito arvorava esses
princípios mas, sobretudo, ambicionava o poder. Quanto ao MPLA, tinha alguns
fulanos que pensavam assim mas foi radicalizando a sua linguagem à medida que
havia a pressão externa. E para agradar aos soviéticos, porque lhe convinha
aquele regime de Estado e de partido único. Porque duvido das convicções de
muitos daqueles que preconizavam o marxismo-leninismo.
Como
é que todas essas notícias de golpes, mortes, fuzilamentos, influiram no seu
estado de ânimo?
Eu
já estava anestesiado. Mas lembro-me que fiquei mais desanimado. A maior parte
daquela gente que estava a ser fuzilada era inocente. E estava a ver o meu país
mais esvaziado, inclusive de jovens, muitos com boa preparação, a maior parte
deles, generosos, e isso fez-me pensar que se tratava de mais um crime cometido
por aquele regime. Nito foi uma criatura de Neto – por exemplo, para nos
combater no Congresso de Lusaka – e, então, vítima da sua criatura, vinga-se de
uma maneira sanguinária. Era um país mais desmembrado, mais esvaziado e isso
criou um vazio ainda maior em mim.
“De
maneira alguma me sinto português. É um país de exílio”
No
fim do livro, escreve que tinha chegado a um país que não era o seu, aos 43
anos, para recomeçar. Portugal continua a não ser o seu país?
Não.
O
seu país continua a ser Angola?
Tem
de ser, não pode ser de outro modo. Embora os meus pais sejam de cá, a minha
mulher era de Chaves, ainda lá tenho parentes e tudo isso. É evidente que uma
parte da minha matriz cultural é portuguesa, como qualquer urbano angolano,
seja de que cor for – uns mais outros menos. Mas é um país de exílio. Estive em
vários, dei-me sempre bem em todos onde estive. Neste, melhor me dou. Mas, de
maneira alguma, me sinto português. Às vezes, até estranho, quando ouço os meus
filhos dizer “nós”: nós, quem? Fico sempre chocado quando dizem a “nossa
selecção”, a selecção portuguesa não é a minha, mas depois compreendo.
Já
agora, vibrou com a selecção angolana no Mundial de 2006?
Vamos
lá a ver, os triunfos desportivos angolanos orgulham-me. Por exemplo, em basquetebol,
somos reis em África, e no andebol feminino.
Mas
não acredita muito no futebol?
No
futebol angolano, não, está fraquinho. Não tem qualidade. Não temos craques. E
mesmo que tivéssemos craques, com o grau de organização que tem havido, não seriam
bem aproveitados.
Não
se conseguiu aproveitar o feito dessa selecção que alcançou o apuramento para o
Mundial de 2006?
Não.
Aliás, ela foi o produto de dois ou três jogadores bons. Estão sempre a mudar
de dirigentes e sempre em makas.
O
Tarzan, como lhe chamava a Mãe Vitória, por andar sempre de calções sem camisa
e descalço, já se habitou ao clima português?
Já,
sobretudo no Verão [risos].
O
Inverno ainda lhe custa?
Muito,
muito, muito. No tempo em que a minha mulher era viva, quando chegava a
Fevereiro, já me pesava tanto a falta de luz, os dias curtos, que dizia: “Lena,
faz-me um muzongué”.
Falta-lhe
a cultura angolana do quintal ou aqui tentou reproduzir isso por aqui?
Por
exemplo, às sextas-feiras, tenho um jantar. E nesse jantar, tão depressa somos
seis como doze como dezasseis. Conforme os angolanos que passam por aqui, mais
os amigos. Por norma, somos sempre mais do que o núcleo familiar, que agora é
de seis pessoas. Outras vezes, vou eu a almoços; antes, não, mas agora, de há
uns anos para cá, as pessoas parece que me descobriram. Já não incomodo
ninguém. Talvez, depois daquele livro de 2006. E indivíduos que até tiveram
cargos de responsabilidade governativa em Angola.
Está
à espera do seu passaporte angolano há quatro anos. Quer voltar a Angola?
Claro
que sim.
Só
de visita ou gostava de lá viver?
Eu,
como cidadão angolano, tenho direito a ter o meu passaporte. Acho que com o que
fiz pelo país, por maioria de razão. Não interessa, não quero ser mais do que
os outros, quero ser um simples cidadão angolano. Como já tenho idade, sou
aposentado, se tiver a liberdade de ir a Angola, posso encantar-me com um
recanto do meu país e querer ficar. Ou, então, fico três ou quatro meses com
amigos e depois venho. Não posso fazer qualquer projecto enquanto estiver
manietado.
Mas
quatro anos à espera não é normal, já perguntou porquê?
No
consulado angolano, onde meti os papéis, fui lá perguntar, passado um ano ou
dois. Responderam-me que a documentação estava em Luanda. Agora não sei quais
são os critérios que seguem para dar o passaporte ou não.
A
desilusão de 1992 e o bem gerido processo de reconciliação nacional
Em
1991, 1992 voltou com Gentil Viana com ideia de poderem ajudar Angola.
Desiludiu-o muito aquilo que aconteceu depois das eleições?
Totalmente.
Foi o recomeço da guerra civil e veio a verificar-se exactamente o oposto do
projecto do Gentil Viana, que era de convivência nacional, Com os estragos que
daí advieram, sobre as populações, sobre os bens e sobre as almas das pessoas.
De maneira que foi uma desilusão tremenda. De tal modo que nunca mais me
interessei pela política angolana. Passou a ser-me indiferente se nomeavam um
ou se nomeavam outro. É evidente que ansiava que a guerra civil acabasse. E
quando acabou, perguntei-me: “E agora?” Mas acho que o processo foi muito bem
gerido, ouve muita sensatez da parte do presidente, por ter poupado os líderes
e de ter dado passos significativos no sentido da reconciliação nacional.
Como
vê estes 12 anos de paz, em termos de democracia angolana?
Há
uma coacção que se exerce e um condicionamento da opinião pública através dos
meios de comunicação estatais, isso é evidente. E, portanto, há toda uma série
de tiques de hegemonia do partido no poder que se mantêm. Agora, não há dúvida
nenhuma que as pessoas se podem organizar em partidos, em associações, ter
jornais e dizer o que pensam. Não tem nada a ver com aquele período de que falo
no meu livro, em que se morria por ter uma opinião. Mas é uma democracia mais
formal que real, muito imperfeita e era bom que se corrigissem muitas coisas. É
verdade que há uma centralização forte do poder nas mãos do presidente e, quer
dentro do MPLA, quer em relação a Angola, muitas coisas dependem da postura do
presidente, da sua maior ou menor sensatez. Quero dizer com isto o seguinte:
Angola não tem estruturas para ter a necessária autonomia dos vários poderes.
Para que uma democracia funcione – e, sabe-se, como nas democracias
consolidadas isso pode ser prevertido -, a distinção e a autonomia dos vários
poderes devem estar claramente definidas e em Angola não estão. Outro aspecto,
é a posição da elite política e económica, de uma insensibilidade total para os
problemas sociais e que acabará por se virar contra ela. É preciso diversificar
a economia angolana e atacar o problema das profundas desigualdades sociais. Se
os pobres deixarem de ser pobres, passam a consumir mais e a dar mais dinheiro
aos ricos. Pelo menos, que vejam as coisas nessa lógica.
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